quarta-feira, 27 de maio de 2015
O gosto do café não trazia nenhuma outra sensação, se não o amargo daquela madrugada que nem mesmo Leonard Cohen conseguia, com sua voz de ouro, dar cor romântica a toda tragédia de uma só família. Não, definitivamente, nem mesmo o quarto escuro, enquanto todos dormiam, trazia o sentimento de segurança ou tranqüilidade. Pelo contrário, lá fora, mesmo que em silêncio, tudo era apenas gritos, sirenes, que em algum bairro rasgava as ruas de asfalto cor sangue e choros cantando injustiças...

A cama suada anunciava um corpo inerte que acabara de acordar de um pesadelo tão real, tão palpável... Lá fora, apenas luzes da noite e um suave assobio de um guarda que fingia dar proteção ao bairro. Uma mulher, de roupas surradas e corpo tão magro quanto á esquálida silhueta de um cabo de enxada ou vassoura, passava pela rua a procura de comida entre latas de lixo. A princípio, nada de incomum, uma noite mais que brasileira... Mas aquele sentimento agoniava o peito. O que estava de errado, fora o pesadelo?

Uma sirene passou pela rua apressadamente, luzes vermelhas piscaram pelas janelas semi-abertas, iluminando parcialmente o quarto, e em seguida outra sirene, e mais outra, e mais outra, e mais outra como num ritmo musical desesperado e apressado para chegar-se ao ápice da melodia. E aquele sentimento não se aquietava. Anunciava uma tempestade sem nenhuma rota de fuga.

Pessoas saiam às ruas em busca de respostas para tamanha movimentação. O café, sobre o criado mudo, esfriava sob luzes de giroflex que, apesar de não ter mais sons de sirenes, parecia não querer abandonar o quarto. E o que antes era apenas silêncio e pesadelo, agora não passava de gritos e realidade.

A porta se abriu de súbito, num som estarrecedor contra a parede, e corpos de pessoas uniformizadas forçavam entrada pelos cômodos, fazendo sombra sob a semi iluminação e gritando palavras nervosas que pediam calma aos que, na casa, estavam de pé. Não demorou muito para entender. Não era só mais um pesadelo...  O sentimento no peito era uma bala calibre 38, que atravessara o pesadelo para se tornar mais uma estatística. Outro honesto não teve pedido de clemência e nem pôde terminar o café. Mas a princípio nada de incomum. Só mais uma noite mais que brasileira...

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